quinta-feira, 29 de maio de 2014

METRÔMETRO

Por Jefferson Rocha


"Sim! É possível que personagens se tornem perfeitos devido à simples vontade de conhecê-los pelo nome. Ao utilizar o artifício de esconder a identidade dos pilares da trama, autores tentam criar uma armadilha capaz de sugar o leitor para dentro do seu texto. Poucos têm êxito, como na experiência de sucesso encontrada na sucessão de linhas a seguir..."  Fabio Jr, Jornalista.



A passividade era maior do que qualquer plano, meta e tentativa de produção. Tinha uma caneca com metade de café frio, e a outra metade com ar gelado. Na face, a frase: “Melhor tio do mundo”. Ele sabia que era um tio meia-boca, mas tinha sobrinhos maravilhosos.

Enquanto tentava escrever, ou simplesmente esquematizar o que pretendia escrever, coçou os olhos pelo menos umas quinhentas vezes. Coçava como quem coloca na conta daquele ritual o clareamento das ideias. Mas era inútil.

Faltavam apenas algumas horas para a escuridão da madrugada transformar a sexta-feira. No outono os dias são misteriosos. Quando a luz não dá as caras, fica impossível saber se realmente o dia será dourado ou cinza. Dependendo da região, nem o aplicativo no celular ajuda. À medida que a hora passava, seus dedos magros tremiam mais e mais.

Ele queria muito ter as ideias concatenadas para começar freneticamente sua labuta. Não conseguiu. A rotina desde as primeiras horas do último dia da semana era a mesma: escrevia algo que achava que valesse a pena, lia, relia e depois de selecionar todo o parágrafo, apertava a tecla “Del” como quem ofendesse o oficio.

Mas o que mais lhe deixava puto, era o fato de que facilmente em outras oportunidades ele se via bem mais competente. Escrevia como um louco. As ideias fluíam e a coisa acontecia com uma naturalidade tão ímpar, que seus textos eram extensões de sua anatomia. Acho que personalidade soaria melhor na frase anterior. Foda-se, o texto é meu.

Mas o dele era só dele. E sabia que estava guardado em algum lugar. A esperança do achado diminuía com o findar da escuridão da madrugada.

Mais um pouco de café.

- Puta que pariu. Tá gelado essa porra!

Pensou antes de ir à cozinha ligar a cafeteira e colocar o dobro de pó do que de costume.

Olhava atônito os primeiros raios da manhã esbofetearem sua cara. O tempo era marcado pelo compasso irritante do eletro produtor de café. Uma cadência que lembrava muito um metrômetro. Acendeu mais um cigarro. A coleção de guimbas era grande e nojenta.

Seu corpo de tão grande e magro parecia um pouco envergado à frente. Nariz grande e que brotavam poucos pelos das narinas. Nunca gostou de bigode e andava sempre com barba por fazer. Pelos brancos exageravam sua aparência. Tinha pelo menos três ou quatro anos a menos que a maioria achava.

Olhou para o grande relógio branco de parede. Sim, era branco, mas tinha números pretos e uma borda prateava que emoldurava aquele círculo do tempo angustiante que ele vivia.

Coçou o queixo e tomou um gole do novo café que acabara de tirar da cafeteira. Fez uma careta, não era lá grandes coisas o sabor. Comeu um biscoito que parecia estar molhado, de tão mole devido ao tempo que ficou dentro do pote de vidro.

Voltou para a mesa, ligou o PC, e ainda estava lá o desafio. Mas enganava-se quem achava que a obra estava em branco. Ele queria apenas tentar achar uma frase que sintetizasse a obra.

Seu romance estava muito próximo de ser concluído. Precisava da chave que fechasse da forma que ele sonhou. Esperava, e nada surgia durante toda a madrugada de sexta

Escreveu a obra em três meses e não conseguia a frase. O desfecho. Foi aí que veio a luz. Correu até a janela de seu apartamento. Abriu a persiana com cuidado para não ferir os olhos devido ao costumeiro escuro da madruga.

Como um relógio, ela passou para trabalhar. Ficou esperando o tempo passar e ela esperava o ônibus. Bem em frente ao seu apê. Quatro andares separavam ela e ele.

Voltou ao PC. Misturou um pouco de Jack Daniel’s no café. Tomou um belo gole e abriu o arquivo de seu livro pela primeira vez desde a tarde de quinta. Escreveu alguns caracteres para terminar seu romance sobre um crime passional.

“A sala de interrogatório tinha apenas o acusado que tentava explicar o que o levou a fazer aquilo. O investigador ligou o gravador e o pobre levantou a cabeça, olhando com certa melancolia para o seu interrogador.

Diga senhor, por que a matou?”

Foi aí que escreveu a última frase. Aquela que procurou por toda a madrugada. Após ouvir Animals do Floyd e pelo menos uns três LPs de festivais da canção. Ele achou a sua frase quando observou o cotidiano dela que continuava no ponto de ônibus.

A companhia tocou e ele foi abrir. Era ela.

- Pensei que não iria subir.

- Sabe que sempre vou subir... Sempre.

-Fiz café. Tá uma bosta.

- Nunca foi bom, mas adoro o seu café.

Os dois foram para a cozinha, se beijaram e ele a carregou nos braços para o quarto. Fecharam a porta.

Na sala, sozinho, desprezado e finalizado, um texto de aproximadamente 300 páginas estava aberto no PC. Mas o cursor do Word piscava justamente no fim do parágrafo a seguir:

“Olha doutor... foi quando ela saiu de dentro do quarto com aquele vestido vermelho que contrastava com o loiro dourado de seus cabelos. Aquele maldito vestido que a deixava maldosa e estupidamente... linda."

6 comentários:

  1. Como construtor poético, considero sua narrativa uma condicionante positiva no processo de busca incessante por uma supremacia da narrativa literária, no consciente coletivo "valedoacional".

    Parabéns!

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  2. Parabéns Jeffão!! Belo texto, muito bem construído. Me peguei pensando em mim nas minhas construções narrativas. Desfechos não são meu forte. Prefiro abrir caminhos para novas possibilidades, assim como vc o fez aqui. Fico feliz por saber que ainda temos bons narradores por aqui! Abraço forte meu caro! :D

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  3. Maravilhoso. Fico admirada com as suas palavras. parabéns.

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  4. Maravilhoso. Fico admirada com as suas palavras. parabéns.

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